Tradução
de Leonardo Faccioni
Aos 9 de abril de 1865, o general
Robert E. Lee encontrou o general Ulysses S. Grant na Casa McLean, em
Appomattox, Virgínia, com o propósito de entregar a rendição do Exército da
Virgínia Setentrional. Lee pedira pelo encontro e preparou-se endossando seu
melhor uniforme: uma nova, longa casaca de colarinho alto, abotoada até o topo;
um par de botas de cano longo com esporas; ao flanco, uma espada cravejada.
Grant compareceu com seu traje rotineiro, o uniforme simples de um soldado
comum: casaco curto e liso, botas sem esporas, todo salpicado de lama.
O contraste ao vestir acompanhou o
contraste entre os homens: Lee era alto, de porte ereto e igual maneira. Barba
e cabelos de um branco prateado circundavam sua face e perfilavam o vulto digno
de um rei. Grant era mais jovem e dez centímetros mais baixo, algo encurvado e
dotado de uma rala barba castanha. Ele estava claramente pouco à vontade na
presença de Lee e, nervoso, tentou estabelecer uma conversação corriqueira.
Grant disse lembrar-se ainda muito bem de Lee desde um seu encontro durante a
Guerra Mexicana, quase duas décadas antes. Lee confessou não recordar coisa
alguma da ocasião. Ouvir a resposta de Lee deve ter sido um momento embaraçoso
para Grant.
Essa cena culminante da Guerra Civil
Americana foi com frequência citada como o emblema de um divisor de águas
históricas: a rendição alegórica do Velho Mundo, com suas personalidades régias,
vínculos cavalheirescos e riquezas hereditárias, a um Novo Mundo personificado
por Grant, um homem de origens humildes que repetidamente fracassara nos
negócios e fez-se, finalmente, ao lutar na guerra (se bem que com esmagadoras
vantagens em homens e materiais ao seu lado). E de fato foi assim.
Mas também foi mais. Menos notado é o descuidado
desrespeito de Grant por Lee ao deixar de vestir-se apropriadamente para sua
reunião. Escusas foram levantadas sobre Grant ter acorrido ao encontro às pressas,
pressionado por negócios urgentes; por ter estado, naquela manhã, sofrendo há
dias de enxaqueca, e que, consequentemente, “trivialidades” tais como uma
própria vestimenta eram as coisas mais distantes de sua mente. Os admiradores
de Grant chegam a apontar suas vestes rudes como uma insígnia de honra: aí
estava o soldado duro na queda, o americano da fronteira, o verdadeiro
democrata, cujo valor se encontrava em sua disposição interior, em sua
perseverança, e não na superficialidade de seus trajes, preocupação efeminada
de uma era afetada e decadente.
Mas as aparências importam. Quando
estudante, o jovem George Washington certa vez realizou um exercício de cópia
intitulado “Regras de Civilidade e Bom Comportamento em Companhia e
Conversação”, baseando-o em um texto jesuíta do século XVI. No topo da lista de
suas cento e dez regras, uma guia-mestra: “Cada ação feita em Companhia há de
ser desempenhada com algum sinal de Respeito por aqueles que se encontram
Presentes”. Essa máxima presidiu a cultura ocidental desde a Idade Média,
exemplificada pelos modos corteses das classes elevadas, onde e quando quer que
se encontrassem: dos cavaleiros do reino franco aos nobres elisabetanos,
chegando à classe aristocrática do sul americano, por Lee e Washington representada.
Aonde as classes altas conduzissem, as demais as seguiam. As boas maneiras
comunicavam-se, de forma que o trabalhador comum, na Londres do século XIX, ao
usar seus trajes de domingo, tentava emular os hábitos de seus melhores.
Cartola e colete podiam ser batidos e de qualidade inferior, mas ele os portava
altaneiro, nada obstante.
Hoje, a noção de que o cultivo de boas
maneiras deveria ser parte essencial da educação pessoal foi perdida quase por
completo. Ela parece ter morrido junto a sua maior defensora contemporânea,
Emily Post. “As maneiras são a personalidade”, escreveu Post, “a manifestação
aparente do caráter inato e da atitude que alguém tem perante a vida”. Provas
de seu falecimento estão por toda a parte ao nosso redor: o uso aberto de linguagem
chula pelas ruas, não apenas da parte de uma juventude desleixada e mal-educada, mas
por bem-vestidos empresários de meia idade; a estridência em nossos ouvidos de
algo equivocadamente tratado como música por seus adeptos desde as janelas dos
automóveis; as curvas e mudanças de faixa por motoristas pouco afeitos à
cortesia de dar sinal; a violação rotineira de nosso espaço pessoal por
transeuntes sem qualquer pedido de desculpas, e, mais óbvio e espantoso, o
horrível declínio nos padrões de vestimenta. Com efeito, camisetas, jeans e
tênis tornaram-se indumentária padrão para adultos nas “sextas-feiras casuais”
do mundo dos negócios, e, ainda mais sofrível, também nas missas de domingo. As
pessoas se aventuram de suas casas, saindo a público em pijamas para seus
afazeres das manhãs de sábado. Hoje é a classe mais baixa da sociedade a
determinar os padrões dos trajes para todos os demais. Jovens adotaram versões
exageradas de uniformes presidiários como roupa quotidiana, mormente calças por
demais folgadas, vezes tantas usadas tão baixas que suas roupas íntimas (e
mesmo o derrière) ficam expostos para
todos verem.
A sociedade de boas maneiras começou
sua agonia na América durante os anos 1960. O primeiro golpe letal foi-lhe
desferido pela Esquerda radical, política e cultural, que pregava serem os paletós,
os modos polidos e o asseio pessoal símbolos da opressão das classes médias
burguesas. Por sua vez, trajar camisetas tingidas, jeans rasgados, chinelos de
dedo, barba desgrenhada e cabelos despenteados sobre a face e a cabeça,
ensinava a Esquerda, era a via para produzir a revolução igualitária que
corrigiria as injustiças sociais.
A obra iniciada cinco décadas atrás
pela Esquerda do espectro político foi exacerbada pela Direita anos depois.
Grandemente em resposta às gélidas formas do que ficou conhecido como
“politicamente correto”, imposto pelos radicais nos campi universitários,
direitistas libertários, a partir dos anos 1990, adotaram o mantra de que
“ninguém tem direito a não ser ofendido”. Em uma transformação decisiva do
antigo adágio libertário sobre o direito de alguém terminar no direito de
outrem, esses novos libertários alegavam que sua liberdade de expressão era
completamente independente das sensibilidades religiosas alheias ou do
apropriado senso de decoro. Portanto, pornografia, sátiras ultrajantes das
crenças religiosas e linguagem grosseira eram aceitáveis em praça pública. A
quem se ofendesse por tais coisas, esses libertários pregavam ser problema do
ofendido, não do ofensor. Com efeito, os libertários arguiam que seu direito de
vomitar o que quisessem pela palavra escrita e falada não era limitado pelos
olhos e ouvidos alheios. Diziam aos ofendidos: “—Você que se vire!”
Assim os inimigos das maneiras, tanto
à Esquerda quanto à Direita, juntos constituíram os Jacobinos de nossos dias,
determinados não apenas a derrubar um sistema injusto de governo, mas a
obliterar o próprio tecido social, destruindo para tanto todos os padrões de
decoro. Este paralelo com a Revolução Francesa aproxima-nos ao pensamento do
grande estadista anglo-irlandês Edmund Burke, para quem os Jacobinos da França
estavam, acima de tudo, lançando um assalto às “maneiras”. Por “maneiras”,
aqui, Burke entendia algo mais amplo que aquilo hoje entendido. Algo próximo ao
costume. Para Burke, os costumes eram quase sinônimos de civilização. “As
maneiras são mais importantes que as leis”, escreveu ele. “Maneiras são o que
nos atormenta ou apazigua, corrompe ou purifica, exalta ou rebaixa, barbariza
ou refina, por uma constante, determinada, uniforme, imperceptível operação,
como aquela do ar que respiramos”.
Maneiras – e a própria civilização –,
Burke sustentou, dependiam de duas coisas: a religião e o “espírito dos cavalheiros”.
Robert E. Lee acreditava no mesmo. Como presidente do Washington College nos
anos seguintes a Appomattox, ele reduziu as regras da escola a uma única frase:
“Cada estudante deve ser um cavalheiro.” Para Lee e para Burke, um cavalheiro
era aquele que demonstrasse virtude cristã, como a incorporada no código
medieval de cavalaria, um elaborado sistema de comportamento adequado para com
os outros – maneiras no sentido estrito do termo.
A qualidade da humildade cristã reside
na raiz da cavalaria. Um cavaleiro cavalheiresco (a palavra “cavalheirismo”
compartilhando com “cavaleiro” a mesma raiz, como no francês “chevalier”)
humilha-se em sociedade perante todos os demais. Eis como estava vinculado por
obrigações não apenas a seu senhor, seu superior, mas
para com os mais fracos, especialmente as mulheres, cuja virtude inocente era
sua missão proteger, e também para com os pobres, cuja frágil condição era
obrigado a aliviar. Basta lembrar de São Martinho de Tours, que famosamente
cortou metade de sua capa militar para dar de vestir a um homem que nada tinha.
Adotar uma filosofia de individualismo, pela qual é rejeitado o zelo sobre os
outros, teria sido inimaginável para o cavaleiro cristão.
É preciso ter em mente quão únicas foram
a noção cristã de humildade e sua idéia correlata de cavalheirismo ao longo da
história mundial. No antigo mundo pagão, por exemplo, a humildade era
considerada um sinal de fraqueza. Igualmente, em muitas sociedades modernas
não-cristãs, é esperado dos superiores que sejam rudes com seus subalternos,
assim mantendo cada qual em seu devido lugar. Os poderosos, em muitos tempos e
lugares, impuseram brutalmente seu jugo como forma de manter o status quo.
Mas o cavalheirismo cristão, Burke
acreditava, “faz o poder gentil” e servia para “embelezar e amenizar a sociedade
privada”. Ele harmonizava as relações humanas. Sem ele, a sociedade só poderia
manter-se pela força bruta e pela racionalidade fria. Ido andaria o calor das
corteses relações humanas, corrompida estaria a moral dos homens, e todos
seriam reduzidos a escravos.
É claramente impossível delimitar o
momento exato quando o declínio do cavalheirismo e das boas maneiras teve
início no Ocidente. Burke por certo encontrou o processo bastante avançado na
Europa aos tempos da Revolução. “A era do cavalheirismo é finda”, escreveu
Burke nas suas Reflexões sobre a
Revolução em França. “Aquela dos sofistas, economistas e calculistas há
triunfado, e a glória da Europa foi extinta para sempre”. Talvez, na América, o
brusco declínio das maneiras tenha começado mais tarde, em um humilde lar ao
centro-sul da Virgínia, onde o último cavalheiro do Velho Mundo deitou sua
espada em derrota, dando lugar à Nova Ordem Mundial de governo centralizado,
capitalismo de compadres e de um narcisista Homem Novo, cuja preocupação principal
viria a ser o lucro e a felicidade pessoal, não a piedade e a preocupação
humilde pelos demais.
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