
De qualquer forma,
antes de esmiuçar a dinâmica normativa em comento, é preciso que desarmemos uma
cadeia nem sempre sequencial de premissas mal formuladas e objeções
insuficientemente refletidas, de que diversos apparatchiks se vêm aproveitando à
guisa de sustentar a pureza de sua armadilha.
1. Governo é governo.
Administração é administração. O decreto não garante qualquer controle popular
sobre o que quer que seja, mas ingerência direta de esbirros partidários em
cada instância administrativa de todos os órgãos de Estado. Eis a finalidade originária, transbordante até mesmo da linguagem adotada, que denota a ausência do critério de generalidade tão necessário às boas leis e, ao revés, de plano denuncia seu direcionamento partidário.
2. Deliberadamente confunde-se participação social com democracia direta — instituição já modulada, cum grano salis, pela Constituição Federal. Extremistas de esquerda entre nós sempre alegaram o intuito de “ampliar os espaços de democracia direta” — entenda-se, ampliar para além das possibilidades constitucionais. Para que funcione,
uma idealizada democracia direta aos moldes gregos exige adesão total ao modelo
grego. Modelo, isso é, com cidadania censitária e escravos que produzam uva e
vinho a sustentar quem passa os dias a deblaterar na ágora. Se queremos
democracia ateniense, deixemos claro de antemão quais de nós seremos os
cidadãos, e quais os escravos, a fim de que nos ponhamos de acordo. De outro
modo, se é para a sociedade indicar “delegados” junto às instâncias
administrativas, tais delegados já existem e se encontram nos parlamentos,
eleitos por voto direto de um a um dos brasileiros, e não pelo poder unipessoal
do tirano de Siracusa.
3. “Ah!, mas a
Suíça...”
Democracia direta aos moldes suíços nada tem a ver com lobistas privilegiados a fazer diuturna pressão sobre salas reclusas, em nome de baronatos sindicais e bandeiras cor-de-sangue. Em vez de concorrer contra o postulado democrático “um homem, um voto”, o sistema helvético maximiza-o, oferecendo a cada família e comunidade a oportunidade de, mediante regras sólidas e cristalinas, participar tranquila e pontualmente do processo legislativo — isto porque pressupõe observância máxima dos princípios de transparência e subsidiariedade. Serve ao controle apriorístico da sociedade sobre o Estado, mediante ritos públicos, assegurada inviolável a autonomia do cidadão e de suas livres associações.
Democracia direta aos moldes suíços nada tem a ver com lobistas privilegiados a fazer diuturna pressão sobre salas reclusas, em nome de baronatos sindicais e bandeiras cor-de-sangue. Em vez de concorrer contra o postulado democrático “um homem, um voto”, o sistema helvético maximiza-o, oferecendo a cada família e comunidade a oportunidade de, mediante regras sólidas e cristalinas, participar tranquila e pontualmente do processo legislativo — isto porque pressupõe observância máxima dos princípios de transparência e subsidiariedade. Serve ao controle apriorístico da sociedade sobre o Estado, mediante ritos públicos, assegurada inviolável a autonomia do cidadão e de suas livres associações.
Só pode subsistir
demonstração assim bela de coesão social onde os postulados fundantes da
civilização são seu substrato, não mais sua pauta, pois de violá-los jamais se cogitaria. Os referendos dos cantões nada
são senão pedidos de permissão, com delimitadíssimo escopo, acerca de negócios
estritamente públicos. A seu turno, o “sistema participativo” do
Decreto, do qual só participa quem já inserido se encontrava nos círculos
nebulosos do poder central, opera por princípio inverso: controle do Estado
sobre a sociedade, verticalmente imposto em função de vontade única do partido
presidencial, assim assegurando este sua pretensão de onipresença, como
transparece de sua fundamentação ideológica (devaneio gnóstico, sublinharia
Eric Voegelin, pois uma tal ideologia evidentemente assume o Estado como imanentização
de um atributo divino — discussão que o momento infelizmente tolhe).
Enquanto o modelo de participação suíço dirime o espaço de discricionariedade governamental e limita a ambição de potência do Estado, o arranjo petista desenha-se a fim de legitimar o arbítrio das turbas por sobre as leis. Conforme se abstrai de São Tomás: se o fim é péssimo, os meios não se salvam.
4. Chegam-nos ecos do
discurso da elite governante (toda branca, por sinal — está na moda tomar melanina
como argumento, e moda estatal é como decisão judicial: convém à saúde
obedecer) inferindo que a oposição ao decreto — ou, mais genericamente, aos
“instrumentos de participação popular” — traz por base reações de classe. Quem
ousa discordar da imposição presidencial nutriria “horror ao povo”.
Amigos do povo, logo
se vê, são apenas os senhores do Estado. Talvez por isso sintam-se tão livres a
deitar sua mão pesada sobre a carteira do brasileiro, sequer vexados de não pedir licença. Também
por isso a balbúrdia da coisa pública, como quem dissesse à população, “Entra,
amiga, e não repara na bagunça!” E, assim fazendo, arrogam-se ainda o título de
defensores do livre debate.
A despeito do
expediente sofista (sobre isso, revisitemos Schopenhauer e a erística), resta
um argumento pertinente. Quem teria do povo tamanho horror a ponto de inventar para
si sociedade paralela, escolhida a dedo por uma única pessoa com vistas a
pautar o Estado inteiro em tempo integral? Quem seria demofóbico ao extremo de,
“em nome do povo” (imaginando-se sacerdote que age “in persona Christi”), impugnar
a legitimidade das instituições democráticas sob a alegação de insuficiência do
cidadão anônimo — menor das minorias — e exigindo sobrepor-lhe “povo”
composto apenas pelos exclusivos indicados do Executivo?
5. Sempre o mesmo
expediente cuidadosamente estudado: os que se adonaram do Estado impõem à
sociedade uma exigência sabidamente absurda. A sociedade rejeita-a. Os donos do
poder afetam ares de escândalo contra os que “interditam o debate”,
fingem revisar o plano e retornam com o mesmo projeto, agora em escala ponderada,
congratulando sua própria generosidade. Para eximirmo-nos da pecha de
intransigentes, aceitamos a pretensão — que no mérito jamais se alterou —,
perdendo de grão em grão a liberdade. Técnica de manipulação empregada amiúde
com fins de engenharia social. Ei-la de volta.
6. Verdadeira
“participação social” atinge-se não com multiplicação de estruturas
burocráticas em uma escalada arcana, senão pela desestatização da experiência
humana. Em vez de clamar por novos cargos e poderes, a Presidência — caso
sincera em seu intento — há que abdicar de muitos que já possui, restituindo
recursos e responsabilidades legitimamente parlamentares, estaduais,
municipais, empresariais, associativas, familiares, pessoais. Há que devolver
aos indivíduos e aos corpos intermédios as rédeas de suas vidas. Há que
reconhecer a premência de valores que não se submetem a voto e não se traduzem
por números, pois perfazem critérios de validação precedentes a qualquer eleição.
Há que compreender, ainda, que comissões, conselhos e reuniões, mesmo
multiplicadas ao infinito, não podem compelir um só ser humano a comportar-se
como animal de rebanho quando maiorias de ocasião decidem marchar rumo aos
infernos. É direito inalienável do homem responder à maioria com as palavras de
Fernando Pessoa: “Vão para o inferno sem mim! ... Para que havemos de ir
juntos?”, rumando enfim ao outro lado sem ser perturbado. Participar é poder
discordar.
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