“Plebiscito truffa”. A expressão é italiana, e costuma fazer referência à seqüência de referendos estabanados, caracterizados por coação e unilateralidade, promovida durante a unificação forçada do país. Um após o outro, os territórios outrora independentes viam seus invasores a convocar votações que confirmassem a adesão da população local, “livre e espontaneamente”, à nova realidade política que as armas já haviam estabelecido. Votavam a quinta coluna e os conduzidos pela força; a maioria calava. Quando se abriam as urnas, surpresa alguma: unanimidade.

“ — E aí, votou em qual opção?”
“ — Eu? Nenhuma. Quando o mesário me entregou a
cédula, já estava preenchida e tudo.”
“ — Bah! Eu também. Tanto melhor; assim cansa
menos.”
“ — Pois é. Menos complicação...”
“Truffa”, aqui, está por “fraude”,
“burla”, “enganação”, e sua etimologia efetivamente remete
ao doce que, em português, conhecemos pelo mesmo nome: nesse caso, a massa
vistosa oculta talvez vento, talvez veneno por recheio.
Para o mês de setembro, laranjas do petismo e aliados
prometem realizar mais um “plebiscito truffa” no Brasil. Não é o
primeiro no currículo da gangue — outros já houve, todos a fim de mascarar
como “apelo popular” a pauta de uma camarilha extremista, tão
organizada quanto demograficamente insignificante. No passado, os alvos
incluíam dar calote nas obrigações do Estado; impedir a compra de produtos
provenientes do “império ianque”; reestatizar empresas que, falidas
enquanto estatais, enfim prosperavam sob novas gestões privadas.
Curiosamente, votações dessa estirpe corriqueiramente
revelam por resultado final a concordância de mais de 90% dos aderentes para
com a proposta dos organizadores. Índice de aprovação digno da Coréia do Norte.
Espantoso como os partidos que ostentam em seus programas os mesmíssimos escopos nunca obtenham adesão maior que a de 5% do eleitorado, sempre que submetidos ao crivo de eleições fiscalizadas por órgãos um tantinho mais
isentos do que eles próprios: e.g., as quatrienais para os parlamentos.
De volta a 2014.
A próxima peça da trupe, relatávamos, sairá do forno em setembro, e pretende ser “a trufa das trufas”: nenhuma congênere pregressa foi preparada com tamanho esmero, nem símile antecipação. Assam-na desde as manifestações de junho, há lá se vai um ano.
A próxima peça da trupe, relatávamos, sairá do forno em setembro, e pretende ser “a trufa das trufas”: nenhuma congênere pregressa foi preparada com tamanho esmero, nem símile antecipação. Assam-na desde as manifestações de junho, há lá se vai um ano.
A idéia: que os votantes digam “sim” ou
“não” à instalação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte, portanto plenipotenciária, a fim de reescrever, do zero, a organização política do país.
Um cheque em branco para matreiros de toda ordem, que os habilitaria a, em
tese, abolir até mesmo a separação de poderes, como se fez na Venezuela,
Nicarágua, Bolívia, Equador, ipso facto na
Argentina e, de meses para cá, querem alguns repetir até mesmo no Chile, uma
vez estável e exemplar.
Dirá alguém que a meta, engendrada como que de afogadilho por massas de voluntários, soaria romântica e, quiçá, ingênua. É evidente que
votação extraoficial, gerida pelos próprios interessados; incapaz de validar a
identidade de seus participantes para que se assegure a paridade um homem – um
voto; sem segurança sobre a inviolabilidade das urnas; sem contraditório entre
as opções estabelecidas; sem, a bem dizer, efetiva alternativa entre os itens a
escolher e, portanto, sem decisão a oferecer, não serve sequer para
estatística.
A intenção, contudo, nunca foi a de realizar uma consulta
popular. Foi, sim, a de gerar fato político, que os mais hábeis a postos
haverão de explorar em seu sequioso benefício.
Não há quem — sequer entre seus organizadores, oficiais
ou oficiosos — ignore a completa futilidade do “plebiscito” enquanto
tal. Absolutamente ninguém nutre a ilusão de que encenação como essa, operada
aos moldes de eleição da UNE (uma escolha entre o “sim, senhor”, o “certamente”
e o “pode ser”, seguindo
“amplo debate” entre o vermelho, o escarlate e o carmesim), venha a
causar por si os efeitos que proclama almejar.
O plebiscito é apenas elemento a mais, talvez o mais
visível, na continuada desconstrução das instituições. Corrosão inicialmente
silenciosa, como a de cupins sob a madeira. Serve a alimentar a retórica da
“insatisfação difusa”, do “clamor por mudanças” nebulosamente
esboçadas — jamais esmiuçadas —, que balizarão esforços menores e mais
pontuais de dilapidação do Estado de Direito. Tudo em nome da voz [de
ventríloquo] das ruas.
Entre os organizadores, segundo dizíamos alhures, não
sobra espaço para ingenuidade. A bibliografia a eles dirigida, que propugna
dissimulação e mentira como métodos fundantes da ação política, principia no
distante Maquiavel, banha-se de Marx, agita-se em Lênin, grassa o estado da
arte em Gramsci e renova-se para mais contemporâneos instrumentos nas penas de
Saul Alinsky, Marcuse, Horkheimer et caterva.
A única ingenuidade acometida ao campo observado é a por
esses mesmos esperada: a do “idiota útil” auspiciado por [ei-lo outra
vez, o Vladimir Ulyanov] Lênin, e fabricada ad
hoc, em escala industrial, dentre as linhas de montagem prediletas de
mestres e doutores orgânicos, ad aeternum tributários do erário nacional.

Por trás da cortina de fumaça e trevas, já sem a barba
dos 1960, trajando Armani e perfilando os cabelos alvos, os verdadeiros
narradores dessa peça transitam entre os salões de governo de mais de um
continente, e não carecem sair às ruas para sujar os sapatos a recrutar eleitorado
cativo. Aguardam sem rumor em gabinetes confortáveis, notavelmente demofóbicos,
onde a “voz das ruas” entra apenas assim: filtrada, e quando (ou se)
convidada, segundo a conveniência. São ladrões de verbas e de almas, e estão a
preparar a ocasião.
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