terça-feira, 2 de setembro de 2014

A Voz [de Ventríloquo] das Ruas: sobre o “plebiscito truffa” do PT


“Plebiscito truffa”. A expressão é italiana, e costuma fazer referência à seqüência de referendos estabanados, caracterizados por coação e unilateralidade, promovida durante a unificação forçada do país. Um após o outro, os territórios outrora independentes viam seus invasores a convocar votações que confirmassem a adesão da população local, “livre e espontaneamente”, à nova realidade política que as armas já haviam estabelecido. Votavam a quinta coluna e os conduzidos pela força; a maioria calava. Quando se abriam as urnas, surpresa alguma: unanimidade.

Uma anedota contemporânea ilustra bem a situação: no dia do plebiscito, saindo do local de votação, um agricultor famélico indaga ao outro, seu conterrâneo:
“ — E aí, votou em qual opção?”
“ — Eu? Nenhuma. Quando o mesário me entregou a cédula, já estava preenchida e tudo.”
“ — Bah! Eu também. Tanto melhor; assim cansa menos.”
“ — Pois é. Menos complicação...”

“Truffa”, aqui, está por “fraude”, “burla”, “enganação”, e sua etimologia efetivamente remete ao doce que, em português, conhecemos pelo mesmo nome: nesse caso, a massa vistosa oculta talvez vento, talvez veneno por recheio.

Para o mês de setembro, laranjas do petismo e aliados prometem realizar mais um “plebiscito truffa” no Brasil. Não é o primeiro no currículo da gangue — outros já houve, todos a fim de mascarar como “apelo popular” a pauta de uma camarilha extremista, tão organizada quanto demograficamente insignificante. No passado, os alvos incluíam dar calote nas obrigações do Estado; impedir a compra de produtos provenientes do “império ianque”; reestatizar empresas que, falidas enquanto estatais, enfim prosperavam sob novas gestões privadas.

Curiosamente, votações dessa estirpe corriqueiramente revelam por resultado final a concordância de mais de 90% dos aderentes para com a proposta dos organizadores. Índice de aprovação digno da Coréia do Norte. Espantoso como os partidos que ostentam em seus programas os mesmíssimos escopos nunca obtenham adesão maior que a de 5% do eleitorado, sempre que submetidos ao crivo de eleições fiscalizadas por órgãos um tantinho mais isentos do que eles próprios: e.g., as quatrienais para os parlamentos.

De volta a 2014.
A próxima peça da trupe, relatávamos, sairá do forno em setembro, e pretende ser “a trufa das trufas”: nenhuma congênere pregressa foi preparada com tamanho esmero, nem símile antecipação. Assam-na desde as manifestações de junho, há lá se vai um ano.

A idéia: que os votantes digam “sim” ou “não” à instalação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte, portanto plenipotenciária, a fim de reescrever, do zero, a organização política do país. Um cheque em branco para matreiros de toda ordem, que os habilitaria a, em tese, abolir até mesmo a separação de poderes, como se fez na Venezuela, Nicarágua, Bolívia, Equador, ipso facto na Argentina e, de meses para cá, querem alguns repetir até mesmo no Chile, uma vez estável e exemplar.

Dirá alguém que a meta, engendrada como que de afogadilho por massas de voluntários, soaria romântica e, quiçá, ingênua. É evidente que votação extraoficial, gerida pelos próprios interessados; incapaz de validar a identidade de seus participantes para que se assegure a paridade um homem – um voto; sem segurança sobre a inviolabilidade das urnas; sem contraditório entre as opções estabelecidas; sem, a bem dizer, efetiva alternativa entre os itens a escolher e, portanto, sem decisão a oferecer, não serve sequer para estatística.

A intenção, contudo, nunca foi a de realizar uma consulta popular. Foi, sim, a de gerar fato político, que os mais hábeis a postos haverão de explorar em seu sequioso benefício.

Não há quem — sequer entre seus organizadores, oficiais ou oficiosos — ignore a completa futilidade do “plebiscito” enquanto tal. Absolutamente ninguém nutre a ilusão de que encenação como essa, operada aos moldes de eleição da UNE (uma escolha entre o “sim, senhor”, o “certamente” e o “pode ser”, seguindo “amplo debate” entre o vermelho, o escarlate e o carmesim), venha a causar por si os efeitos que proclama almejar.

O plebiscito é apenas elemento a mais, talvez o mais visível, na continuada desconstrução das instituições. Corrosão inicialmente silenciosa, como a de cupins sob a madeira. Serve a alimentar a retórica da “insatisfação difusa”, do “clamor por mudanças” nebulosamente esboçadas — jamais esmiuçadas —, que balizarão esforços menores e mais pontuais de dilapidação do Estado de Direito. Tudo em nome da voz [de ventríloquo] das ruas.

Entre os organizadores, segundo dizíamos alhures, não sobra espaço para ingenuidade. A bibliografia a eles dirigida, que propugna dissimulação e mentira como métodos fundantes da ação política, principia no distante Maquiavel, banha-se de Marx, agita-se em Lênin, grassa o estado da arte em Gramsci e renova-se para mais contemporâneos instrumentos nas penas de Saul Alinsky, Marcuse, Horkheimer et caterva.

A única ingenuidade acometida ao campo observado é a por esses mesmos esperada: a do “idiota útil” auspiciado por [ei-lo outra vez, o Vladimir Ulyanov] Lênin, e fabricada ad hoc, em escala industrial, dentre as linhas de montagem prediletas de mestres e doutores orgânicos, ad aeternum tributários do erário nacional.

Se considerarmos a tese de Dr. Andrew Lobaczewski, o “idiota útil” tende a apresentar comportamento histérico, estudadamente alimentado por dirigentes de têmpera psicopática. Os “plebiscitos populares” constantemente ventilados por tais esbirros partidários (e, segundo sabemos de Gramsci, tais segmentos políticos deliberadamente confundem partido e Estado, governo e administração, expandindo uns para avolumar outros e, ao cabo, entre eles engolfar toda a dinâmica social) são meio excelente ao incentivo da histeria coletiva necessária à concentração do poder, interesse último de seus manipuladores.

Por trás da cortina de fumaça e trevas, já sem a barba dos 1960, trajando Armani e perfilando os cabelos alvos, os verdadeiros narradores dessa peça transitam entre os salões de governo de mais de um continente, e não carecem sair às ruas para sujar os sapatos a recrutar eleitorado cativo. Aguardam sem rumor em gabinetes confortáveis, notavelmente demofóbicos, onde a “voz das ruas” entra apenas assim: filtrada, e quando (ou se) convidada, segundo a conveniência. São ladrões de verbas e de almas, e estão a preparar a ocasião.

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