quarta-feira, 3 de outubro de 2012

De pernas para o ar

A cada biênio, o mesmo marasmo: candidaturas patéticas irresponsavelmente arregimentadas por três dezenas de partidos políticos, todos desprovidos de substrato social digno de nota, usam e abusam da paciência do cidadão.


Jingles de gosto duvidoso invadem propriedades privadas sem prévia licença (e se o fazem enquanto candidatos, tratarão melhor a privacidade alheia caso investidos da força pública?), cartas e panfletos por ninguém solicitados abarrotam ruas e caixas de correspondência e a já precária programação de rádio e TV aberta recebe vinhetas de um humor obscuro, eventualmente cruel, que nos contam de cidades e países fantásticos onde tudo abunda – menos os princípios e valores que se esperariam de alguém suficientemente sábio, a quem valesse a pena confiar o governo de qualquer coisa.

A despeito da tempestade propagandística que caracteriza o período, é pouco provável que o eleitor leigo tenha a oportunidade real de conhecer algum candidato durante o tempo de campanha. Dita deficiência sistêmica é ainda mais pronunciada quando se foca a disputa daquele cargo político geralmente considerado o mais próximo do povo em toda a hierarquia do Poder: o vereador.

Os partidos políticos brasileiros trazem por meta lançar, em cada cidade, um tal número de candidaturas a edil que se aproxime do total de vagas disponíveis na Câmara Municipal, a fim de ultrapassarem um curioso conceito legal denominado “quociente eleitoral”. Vale dizer, o eleitor médio corre o risco de ser abruptamente apresentado a algumas centenas de desconhecidos, muitos dos quais a lançar mão de toda e qualquer arma para obter seu único e precioso voto de confiança. Como se pode razoavelmente esperar, não há oportunidade para debates relevantes em semelhante cenário.

Entretanto, a calamidade da disputa pela vereança (que encontra correspondentes nas demais eleições proporcionais conhecidas dos brasileiros: aquelas para os cargos de deputados estadual e federal) não é intrínseca à conquista ou ao desempenho da função pública.  Ela resulta de um acidente de percurso no desenho constitucional de 1988.

Aprendemos do princípio político da subsidiariedade, tão caro à doutrina social católica, que é conforme ao direito natural os corpos políticos menores agirem de forma autônoma em relação aos maiores em tudo o que possam compreender sem auxílio superior. Da mesma maneira, é conveniente que as entidades políticas superiores sejam firmemente sustentadas por suas semelhantes inferiores, de tal modo que o edifício político, como um edifício de tijolos, encontre solidez e consistência.

Disso se depreende que o governo democrático deveria emanar das bases eleitorais: os melhores cidadãos seriam selecionados por seus pares. Uma vez reunidos, estes magistrados eleitos verificariam a tendência majoritária entre si, e o líder da corrente de base parlamentar mais sólida viria nomeado o primeiro magistrado da cidade - o prefeito, na linguagem corrente. Assim funciona o sistema parlamentar de governo, ou parlamentarismo, permitindo simplificar e qualificar a escolha do vereador pelo cidadão.

O parlamentarismo, pois, é a primeira de duas reformas essenciais, que a Constituinte de 1988 previra, mas abandonou na última hora.

A segunda reforma, quiçá mais urgente, é a adoção do voto distrital. Através dela, cada município virá subdividido, a fins eleitorais, em regiões menores, mais ou menos correspondentes a um ou mais bairros. São os distritos eleitorais. Os residentes de cada distrito terão de decidir entre apenas um candidato por partido ao cargo de vereador. Ao final, o candidato mais votado entre todos é diplomado o vereador do distrito – como hoje ocorre com o cargo de prefeito.

Com isso, os próprios partidos seriam compelidos a selecionar, entre suas bases, apenas os melhores nomes a oferecer à sociedade. Um palhaço pode eleger-se vereador no atual sistema proporcional porque recolhe votos dispersos, em um pleito sem parâmetros de comparação com outros candidatos. Quando é oportunizado ao eleitor vislumbrar, lado a lado, todos os que lhe desejam representar, o ridículo tem menor apelo. 

Sobre a familiaridade necessária entre eleitores e eleitos, G.K. Chesterton lega-nos a deixa às páginas de seu O que há de errado com o mundo?: "Não há como convencer uma vila de que o maior beberrão é abstêmio e o idiota do lugar é um estadista".  

Com o voto distrital, é dado ao eleitor realmente conhecer seu representante parlamentar, posto que mora e trabalha perto de si. Melhor ainda, o sistema distrital tende a reduzir naturalmente os custos de campanha ao limitar a circunscrição geográfica que cada postulante deve percorrer. Por fim, mas não menos importante, o seu vizinho-candidato teria bons motivos para não invadir sua sala diuturnamente com uma paródia medonha da melodia mais obscena do momento. 

Hoje, nosso modelo representativo está de pernas para o ar. O eleitor elege diretamente seu primeiro-magistrado (o prefeito de sua cidade, o governador de seu estado, o Presidente da República), e é este quem tem de, posteriormente, da cúspide de um Executivo hipertrofiado, formar uma maioria entre... os representantes do povo que o elegeu. Nesse sistema, é possível que os representantes parlamentares do povo inviabilizem o exercício do programa executivo eleito pelo mesmo povo. Não é de se estranhar, portanto, que um dos poderes em conflito (sempre o Legislativo) veja-se qualitativamente esvaziado, composto por políticos irrelevantes eleitos em razão exclusiva do apelo publicitário – e a que publicidade apelativa recorrem! – e relegados a distribuidores oficiais de prebendas e nomes de ruas.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Primus inter pares

Foi a segunda vez em que a Nova República cassou um parlamentar de sua câmara alta - agora, o senador Demóstenes Torres (GO) - e, pela segunda vez, a sensação predominante ao encarar a solidão do réu diante de seus algozes era a de que, naquele instante, muitos destes lhe deveriam fazer companhia. Os males maiores julgaram e condenaram o menor. 


"Decifra-me ou te devoro" dizia a esfinge da antiga Grécia, posta a guardar a entrada da cidade de Tebas.

Às portas do plano piloto, em Brasília, dizem hoje habitar um monstro similar. Tem patas de gatuno, corpo de sapo, cabeça de anta e tentáculos de molusco. Possui escutas em todas as partes e olhos em cada repartição, e a tudo envolve com voz rouca e sinistra quando interpela legisladores e magistrados que se dirigem aos espaços de poder, bloqueando-lhes a avenida: "adora-me ou te delato!"

No dia de hoje, ao que se indica, alguém não lhe prestou as devidas libações. Uma cabeça rolou na capital federal, e o espetáculo, por alguma razão, não se assemelha à verdadeira justiça, mas a um sacrifício pagão.

A esfinge de outrora interrogava: "qual criatura pela manhã tem quatro pés, dois sob o sol a pino e três ao entardecer?" - e quantas vezes repetiu sua charada até ouvir a resposta de um campeão!

O único enigma que a esfinge planaltina oferece, agora, é saber por quanto tempo mais suas grandiosas mentiras e contraditória moral seguirão a ludibriar as massas.

Entretanto, não é bom que uma pátria dependa inteiramente do advento de um único herói para livrar-se de seus vícios. É preciso deixar de alimentar o cefalópode, negar recursos ao dinossauro do poder central. Para reduzir a corrupção não bastam as pequenas concessões das grandes quadrilhas à opinião pública.

Há que cortar os vastos tentáculos que incentivam e recompensam os corruptores. Há que destronar a esfinge, para que bens, pessoas e valores possam voltar a traçar seus caminhos em liberdade e paz, sem pagar tributo algum senão a quem e por quem de direito.

domingo, 25 de março de 2012

"Partì de mal e a bien aturné"

Vivemos em um país peculiar, disso não há dúvidas. O horário eleitoral dito gratuito em rádio e televisão, do qual gozam nossas três dezenas de partidos políticos de centro, esquerda, centro-esquerda, extrema-esquerda e esquerda-volver, é a prova cabal de sua unicidade. E o nonagenário Partido Comunista do Brasil sabe como poucos tirar proveito das novas tecnologias, ou não selecionaria a porto-alegrense Manuela d’Ávila, ora deputada federal, para estrelar suas inserções na mídia burguesa.

Tenho um interesse especial pelo PCdoB. É a agremiação mais sincera em todo o denso, mas limitado espectro político nacional. Nenhum partido brasileiro ousaria incluir em seus documentos oficiais uma declaração formal de apoio ao ideário de Adolf Hitler. Entretanto, o PCdoB é abertamente vinculado aos programas de Josef Stálin e Mao Tsé-Tung, que, sozinhos, já fariam do monstro germânico um aprendiz de bicho papão.

Quero confiar que um partido hitlerista não angariaria, hoje, um único voto em uma eleição. Infelizmente, nosso partido stalinista possui representação crescente em todos os parlamentos e deve abocanhar um bom número de Executivos no pleito vindouro.  

Por que ideários historicamente tão semelhantes – a bem dizer, indistintos do berço ao túmulo – recebem, nestas bandas, tratamentos assim díspares?

No Leste Europeu, que experimentou o jugo de ambos os irmãos, o pavor que evocam para os olhos de mais idade é um só.  Se não se confundem, é pela duração de cada tirania. A primeira matou durante anos; a segunda, graças à indiferença do Ocidente, durante tenebrosas décadas.

O Brasil salvou-se dos dois, ao menos formalmente. Tendo integrado o bloco aliado na luta contra o nazismo, qualquer eventual simpatia tupiniquim pelo totalitarismo ariano foi varrida para baixo dos tapetes do Catete, com a graça do bom Deus. Do veneno soviético, porém, nunca provamos, nem a ele enfrentamos cara a cara. Seu brilho fatal ainda fascina...


E se o Putsch de Munique² houvesse sido o feito máximo do nazismo, tal como a Coluna foi para Prestes? O horror que não vence a fronteira entre a intenção e o ato é menos mau que o horror triunfante? Noutras palavras, o mal, enquanto potência, é indiferente do bem?

Se o nacional socialismo nunca chegasse a constituir um governo na Alemanha, quiçá houvesse agora, lá, uma Manuela d'Ávila bávara a falar às televisões sobre a "luta histórica" da suástica pelo renascimento de um povo esmagado por potências estrangeiras; sobre quantos "heróis" tombaram pelos valores da pátria. E quem nunca houvesse ouvido, nem um dia lido as palavras e os planos de seus "heróis" poderia entrever nos lábios de sua interlocutora toda a verossimilhança sedutora de uma mentira diabólica.

E se a Coluna Prestes houvesse triunfado? E se Olga Benário, antes que mártir, fosse imperatriz - nossa cândida Eva Braun, regalada pelo próprio Stálin? E se do Araguaia maoísta emergisse o sonhado Brasil Vermelho, o Vietnã que samba, a Coréia do Norte continental?

Ah, meus caros. Na história, inexiste o "se". Contudo, algo me diz que Manuela d'Ávila não ousaria contar suas fábulas na TV...
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¹ Partì de mal e a bien aturné, verso inicial de cantiga popular datada de 1189 d.C., durante a Terceira Cruzada: afastado do mal e voltado para o bem. Autor desconhecido.
² 9 de novembro de 1923. A partir da cervejaria BürgerbräukellerAdolf Hitler promove um levante na capital do estado da Baviera a fim de tomar o governo para si. Derrotado pelos poderes constitucionais, inicia a redação de Mein Kempf na prisão.