Jingles de
gosto duvidoso invadem propriedades privadas sem prévia licença (e se o fazem
enquanto candidatos, tratarão melhor a privacidade alheia caso investidos da
força pública?), cartas e panfletos por ninguém solicitados abarrotam ruas e caixas
de correspondência e a já precária programação de rádio e TV aberta recebe
vinhetas de um humor obscuro, eventualmente cruel, que nos contam de cidades e
países fantásticos onde tudo abunda – menos os princípios e valores que se
esperariam de alguém suficientemente sábio, a quem valesse a pena confiar o
governo de qualquer coisa.
A despeito da tempestade
propagandística que caracteriza o período, é pouco provável que o eleitor leigo
tenha a oportunidade real de conhecer algum candidato durante o tempo de
campanha. Dita deficiência sistêmica é ainda mais pronunciada quando se foca a
disputa daquele cargo político geralmente considerado o mais próximo do povo em
toda a hierarquia do Poder: o vereador.
Os partidos políticos brasileiros trazem por meta lançar,
em cada cidade, um tal número de candidaturas a edil que se aproxime do total
de vagas disponíveis na Câmara Municipal, a fim de ultrapassarem um curioso
conceito legal denominado “quociente eleitoral”. Vale dizer, o eleitor médio
corre o risco de ser abruptamente apresentado a algumas centenas de
desconhecidos, muitos dos quais a lançar mão de toda e qualquer arma para obter
seu único e precioso voto de confiança. Como se pode razoavelmente esperar, não
há oportunidade para debates relevantes em semelhante cenário.
Entretanto, a calamidade da
disputa pela vereança (que encontra correspondentes nas demais eleições
proporcionais conhecidas dos brasileiros: aquelas para os cargos de deputados
estadual e federal) não é intrínseca à conquista ou ao desempenho da função
pública. Ela resulta de um acidente de
percurso no desenho constitucional de 1988.
Aprendemos do princípio
político da subsidiariedade, tão caro à doutrina social católica, que é
conforme ao direito natural os corpos políticos menores agirem de forma
autônoma em relação aos maiores em tudo o que possam compreender sem auxílio
superior. Da mesma maneira, é conveniente que as entidades políticas superiores
sejam firmemente sustentadas por suas semelhantes inferiores, de tal modo que o
edifício político, como um edifício de tijolos, encontre solidez e
consistência.
Disso se depreende que o
governo democrático deveria emanar das bases eleitorais: os melhores cidadãos
seriam selecionados por seus pares. Uma vez reunidos, estes magistrados eleitos
verificariam a tendência majoritária entre si, e o líder da corrente de
base parlamentar mais sólida viria nomeado o primeiro magistrado da cidade - o
prefeito, na linguagem corrente. Assim funciona o sistema parlamentar de
governo, ou parlamentarismo, permitindo simplificar e qualificar a escolha do
vereador pelo cidadão.
O parlamentarismo, pois, é a
primeira de duas reformas essenciais, que a Constituinte de 1988 previra, mas
abandonou na última hora.
A segunda reforma, quiçá
mais urgente, é a adoção do voto distrital. Através dela, cada município virá
subdividido, a fins eleitorais, em regiões menores, mais ou menos
correspondentes a um ou mais bairros. São os distritos eleitorais. Os
residentes de cada distrito terão de decidir entre apenas um candidato por
partido ao cargo de vereador. Ao final, o candidato mais votado entre todos é
diplomado o vereador do distrito – como hoje ocorre com o cargo de prefeito.
Com isso, os próprios
partidos seriam compelidos a selecionar, entre suas bases, apenas os melhores
nomes a oferecer à sociedade. Um palhaço pode eleger-se vereador no atual
sistema proporcional porque recolhe votos dispersos, em um pleito sem
parâmetros de comparação com outros candidatos. Quando é oportunizado ao
eleitor vislumbrar, lado a lado, todos os que lhe desejam representar, o
ridículo tem menor apelo.
Sobre a familiaridade necessária entre eleitores e eleitos, G.K. Chesterton lega-nos a deixa às páginas de seu O que há de errado com o mundo?: "Não há como convencer uma vila de que o maior beberrão é abstêmio e o idiota do lugar é um estadista".
Sobre a familiaridade necessária entre eleitores e eleitos, G.K. Chesterton lega-nos a deixa às páginas de seu O que há de errado com o mundo?: "Não há como convencer uma vila de que o maior beberrão é abstêmio e o idiota do lugar é um estadista".
Com o voto distrital, é dado
ao eleitor realmente conhecer seu representante parlamentar, posto que mora e
trabalha perto de si. Melhor ainda, o sistema distrital tende a reduzir
naturalmente os custos de campanha ao limitar a circunscrição geográfica que cada
postulante deve percorrer. Por fim, mas não menos importante, o seu
vizinho-candidato teria bons motivos para não invadir sua sala diuturnamente
com uma paródia medonha da melodia mais obscena do momento.
Hoje, nosso modelo
representativo está de pernas para o ar. O eleitor elege diretamente seu
primeiro-magistrado (o prefeito de sua cidade, o governador de seu estado, o
Presidente da República), e é este quem tem de, posteriormente, da cúspide de
um Executivo hipertrofiado, formar uma maioria entre... os representantes do
povo que o elegeu. Nesse sistema, é possível que os representantes
parlamentares do povo inviabilizem o exercício do programa executivo eleito
pelo mesmo povo. Não é de se estranhar, portanto, que um dos poderes em
conflito (sempre o Legislativo) veja-se qualitativamente esvaziado, composto
por políticos irrelevantes eleitos em razão exclusiva do apelo publicitário – e
a que publicidade apelativa recorrem! – e relegados a distribuidores oficiais
de prebendas e nomes de ruas.