sábado, 2 de abril de 2011

Do bom combate


Juro-vos: detesto falar de ou escrever sobre política. Viver em uma era na qual tudo o que é humano foi ideologizado e instrumentalizado é um fardo pesantíssimo. Mas, há como furtar-se a ele?

Gostaria de aprender e comentar sobre literatura, música - mas música de verdade, não essas barbaridades que assolam o Brasil - filosofia, teologia, poesia! Há coisa mais bela que a declamação? E a pintura - não a "moderna" - que talento exige! Quão abençoados os pianistas, os harpistas e as mãos que acariciam os violinos!

Mas nada escapa à maldição secular desferida por Karl Groucho Marx (ou seria a de Robespierre?): não se pode contemplar nem sentir coisa alguma, senão para aprisioná-la e esmagá-la em esquemas de poder, custe a falácia que custar.

Não é de espantar que o mundo, depois disso, pareça-nos tão pequeno. Quem o pensa ignora o quão únicas são as almas incontáveis, em seus universos sem par na imensidão. A mim sempre fascinou mergulhar nas paisagens noturnas e imaginar as infinitas histórias ocultas a cada janela iluminada pelo caminho. Quantas fábulas fadadas a perder-se nos tempos sem jamais serem narradas, vislumbradas apenas pelos olhos que as sonharam!

Reduzir a mente divina incomensurável, cuja beleza impressa sobre o mundo visível e invisível implora por contemplação, à linguagem da luta e do conflito contínuos é mais que um crime, uma abominação! Façamos música e poesia e prestemos justiça com honestidade. A tanto fomos chamados, não para aprisionarmo-nos às picuinhas dos egos.

Se escrevo sobre política com triste freqüência, é em defesa do ideal dos que, como eu, querem um dia poder ignorá-la e por ela ser ignorados,  gozando o sono dos justos e a paz do Senhor. Daí minha exortação: afasta-te, hipermodernidade, das artes e do sagrado! Deixa-nos em paz, e vai tu para o diabo! Como diria o Pessoa do Reinaldo, por que havemos de ir juntos? Devolve às palavras seu significado, à música sua melodia, aos almoços seu riso e às terras, sua autonomia!

Retrocede, política, àquilo que sempre foste. Cessa de brandir tua espada sobre nossas cabeças! Recobra dos tempos da pólis tua ditosa virtude; fala-nos da boa ordem das coisas exteriores, dispostas segundo a felicidade junto ao Bem; reabre à ética o espaço da alma, baixa a cabeça à moral, que em vetusta ação se expressa. Tu és prolongamento da ordem divina, no coração humano por graça impressa. Imperfeitíssima imagem és, Política, daquela, não dela a sua engendradora!

Era costume entre os antigos romanos que, após uma vida dedicada à Res Publica, os grandes senadores pudessem retirar-se incólumes às suas villas. Eram nos mais belos recantos do Mediterrâneo. Hora de desfrutar o vinho de suas videiras à sombra das oliveiras eternas, ler bons livros, relatar à posteridade a sabedoria acumulada por seus gênios incomparáveis. Nenhum adversário das velhas lutas intestinas teria, doravante, o direito de disturbá-los. De senectude... Liberdade, enfim!

Hoje é difícil sustentar o senso cívico do mundo romano ou da cristandade das catedrais. Vivemos o tempo de excelência das afeições calculadas e das causas ocas, inclusive sobre as mitologias políticas.  Tudo é partido, e nenhum substrato comum nos une. Contudo, para uns poucos, o sonho de Arcádia persiste. A tais corações cabe o direito de vivê-lo. De viver como se deve, protegidos pelo respeito universal ao sentimento do dever cumprido.

Há de chegar o dia no qual a politização inclemente ver-se-á vencida e recuará aos confins que jamais deveria ultrapassar. Será o dia de deitar as armas. Até lá, segue o enfrentamento. Marchamos com as legiões pelo repouso das oliveiras. Por elas, a luta vale a pena. É o bom combate.